quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A indisciplina do desenho ( parte 2 )

O desenho intervinha sob a forma de esboços e estudos preliminares , com diferentes graus de elaboração , ao longo de uma sequência progressiva de etapas , que simplificava o processo de trabalho , muito complexo e moroso quando se tratava , como era comum , de grandes encomendas . 

O que possibilitou a realização dos esboços e estudos em suportes independentes , ao contrário do que era norma até ao século XV , foi a produção em grandes quantidades e a custos acessíveis do papel , que se generalizou então como suporte para a escrita e o desenho , em substituição do pergaminho . 

Efectivamente , não podia ser outro o estatuto do desenho , em épocas que valorizavam na obra de arte o sentido de perfeição e de acabamento , a monumental idade , o tempo que ela demorava a realizar , a nobreza dos materiais utilizados . É de referir todavia que , a partir do século XVII , o desenho foi ganhando progressivamente autonomia , sendo investido principalmente em géneros , também eles considerados menores , como a paisagem e o retrato . 

Não obstante o papel subsidiário e o estatuto inferior que lhe estavam associados ,o desenho foi reconhecido como tendo importância decisiva no processo criativo . Nos séculos XV e XVI , foi mesmo considerado o princípio fundador da teoria da aprendizagem e da actividade artísticas . Esta mudança radical na concepção do desenho , e na relação deste com as outras artes , esteve directamente ligada à revolução no sistema de representação visual ocorrida durante o Renascimento . Nesta época , a arte passou a ter como exigência representar a realidade exterior com verosimilhança . Em face desta exigência , o desenho tornou-se o instrumento privilegiado para treinar o olho e a mão , para alcançar o rigor e a precisão na representação , para assimilar noções como as de perspectiva e proporção , sem as quais qualquer tentativa de imitar a realidade se tornava vã . Saber desenhar passou a ser condição necessária e indispensável para um artista se poder afirmar como pintor , escultor e arquitecto . Neste contexto , o desenho foi instituído como disciplina obrigatória e basilar na aprendizagem artística e assumiu uma função selectiva . 

De certo modo , o desenho já era tradicionalmente o lugar dinâmico onde as ideias e as imagens ganhavam forma . Mas a valorização recente do desenho remete para modos de entender a arte radicalmente diferentes dos que vigoraram durante vários séculos . Podemos mesmo falar de uma inversão nos critérios de apreciação do desenho , valorizado pela espontaneidade e o carácter imediato da sua execução , pelas possibilidades de experimentação que proporciona , pela economia de meios , pelo carácter inacabado dos seus resultados , pela capacidade de dizer o essencial através do mínimo . Não há exemplo melhor do que o facto de o esboço mais rápido e sumário ser frequentemente exposto , publicado e comercializado , encarado que é como sinal exaltante do processo criativo . 

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