Para começar bem o ano, aqui vai uma profunda reflexão sobre o tema mais falado deste blog : A arte .
Este excerto foi tirado do livro " Sentido e destino da arte, de René Huyghe " e acho que é uma das melhores respostas a clássica questão : O que é arte ?
A arte é uma função essencial do homem, indispensável ao
indivíduo e às sociedades e que se lhes impôs como uma necessidade desde as
origens pré-históricas. A arte e o homem são indissociáveis. Não há arte sem
homem, mas talvez igualmente não haja homem sem arte. Por ela, o homem
exprime-se mais completamente, portanto, compreende-se e realiza-se melhor. Por
ela, o mundo torna-se mais inteligível e acessível, mais familiar. É o meio de
um perpétuo intercâmbio com aquilo que nos rodeia, uma espécie de respiração da
alma bastante parecida com a física, de que o nosso corpo não pode prescindir.
O ser isolado ou a civilização que não têm acesso à arte estão ameaçados por
uma impercetível asfixia espiritual, por uma perturbação moral.
Para bem compreender o papel da arte, não é inútil
interrogarmo-nos sobre o que caracteriza o homem, o que o distingue
essencialmente do animal, o que lhe dá a posição cimeira na cadeia dos seres, o
que faz a sua dignidade e nobreza. O animal não experimenta em si senão
impulsos mais ou menos imperiosos, e obedece-lhes: são os instintos, os
apetites, os desejos, os reflexos que o dono lhe ensinou. Para ele, agir é
sentir – sentir a própria natureza.
O homem quer mais: não lhe basta agir, quer agir “com
conhecimento de causa”, como ele próprio diz. Quer conhecer e julgar as
motivações dos seus atos, a “razão” das coisas e dos factos que o rodeiam e se
repercutem nele. Daqui derivou, no sentido mais amplo do termo, a ciência, e
mais particularmente a do passado: a história.
Mas, para que serve conhecer, se não é para agir sobre o que
existe, agir sobre o que há de existir? Construir o presente e o futuro? Mas de
que lhe serviria conquistar o poder, se fosse apenas para o empregar ao acaso?
Temos que saber o que queremos, escolher o que queremos. Ora, escolher implica
que julguemos o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio. Assim, a
esta primeira faculdade própria do homem, o conhecimento lúcido, acrescenta-se
outra: o sentido da qualidade, o desejo de melhorar o mundo e de nos melhorarmos.
A moral e a arte, a ética e a estética fundaram-se ao mesmo tempo. Estes dois
domínios vão a par, às vezes até se penetram mutuamente, pelo menos, na zona
fronteiriça; e já aconteceu terem-se confundido.
Mas, se a moral conduz as nossas ações, a arte aplica-se às
nossas criações: Nos dois casos, é para lhes conferir a qualidade que só o
homem tem o dom de conceber espontaneamente e de buscar lucidamente.
Esta mistura de perspetivas exatas e de graves lacunas,
suscitando o mal-entendido, merece que nela meditemos para tirarmos uma
conclusão quase sempre válida: não é suficiente descobrir uma verdade; é
necessário ainda que o espírito seja bastante forte perante ela para não se
banalizar, para não a tomar como interpretação única, mágica, de toda a
explicação. A realidade viva e, sobretudo, a realidade psicológica, a do homem,
que intervém em primeiro lugar na arte, são infinitamente complexas. É inútil,
é perigoso pretender reduzi-las a uma única perspetiva. É o orgulho inato de
todos os doutrinadores, depressa transformado em sectarismo. A verdade parcial
confunde-se muitas vezes com o erro.
Quando o homem de um determinado tempo e lugar cria a sua
arte, fá-lo em conformidade com a sua conceção do mundo, com as aspirações e
condições da existência. A partir do momento em que esta arte foi constituída,
em que produziu obras que se tornaram para todos num espetáculo permanente,
também é verdade que o homem que a criou se torna independente daqui por
diante. Com efeito, introduz na sociedade um conjunto de imagens cuja ação vai
ser profunda e imprevisível. De tanto as contemplar, os contemporâneos dão-lhe
tanto crédito como às realidades que vêm em qualquer parte. Por meio delas são
moldados, transformados o aspeto do real e, por consequência, as maneiras de
sentir, e até de pensar.
A obra de arte, mesmo quando não passa da simples projeção
daquilo que o homem leva dentro de si, torna-se, no momento em que está
organizada, acabada, uma realidade absolutamente nova, sem equivalente
anterior; e ninguém saberá ainda determinar e definir os seus possíveis
efeitos.
A arte é um dos raros meios de que um indivíduo dispõe para
tornar percetível aos outros aquilo que o diferencia deles: o mundo dos sonhos,
tormentos ou obsessões, cujo peso só ele suporta. Assim, de cada qual exprime o
que se julga inefável: o seu segredo.
Mas a obra de arte não é apenas um simples espelho passivo,
desempenha na nossa psicologia um papel ativo. As imagens criadas pela arte
cumprem na nossa vida dois papéis muito diferentes quase opostos: ora nos
impões e insinuam maneiras de sentir e de pensar; ora nos libertam, pelo
contrário, de determinadas obsessões, de certas forças que trabalham o nosso
inconsciente.
Assim, a obra de arte afeiçoa, modela os corações e os
espíritos, marca-os com o seu cunho. Age como um condensador de vida interior
que comunica aos homens a sua carga. Mas também é muito verdade afirmar que,
por uma ação corolária, os liberta, ao mesmo tempo, de certas tensões
interiores.
O homem pode levar consigo sonhos de pureza e de perfeição
que não chegam a realizar-se na dececionante realidade. Se é artista,
imprime-os, portanto, na imagem das suas obras; procura-os na dos outros, se é
espectador. Chega assim a compensar as lacunas da vida e a dar uma espécie de
existência ao que era necessário ao desenvolvimento do seu ser.
Há que chegar, portanto, à conclusão de que a arte, embora
sofra a influência daquele que a produz e daquilo que a circunda, constitui
apesar de tudo um mundo à parte; e este mundo tem leis próprias às quais
obedece: são irredutíveis. Dissemos que a arte dependia, em certa medida da
história geral, onde vem tomar o seu lugar e também da psicologia particular do
artista que a criou: temos de admitir agora que semelhante a um organismo vivo
deve também vergar-se às suas fatalidades interiores. Tem uma maneira de
evoluir, de se transformar, que lhe é natural e obrigatória, e que se reproduz,
semelhante, em todos os lugares e tempos.
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